Já te aviso: não é fofo, não é bonito, não tem final feliz nem triste, é só real.
- A hora que eu mandar você faz força..... Agora, força! - era a Manobra de Valsalva, eu sabia que não deveria, mas já faziam 17 horas que eu sentia dor, se ela me pedisse para pular da janela eu o faria.
- Ahhhhhhhhhhh!!!!! - O bebê saiu.
Meu marido segurou no colo, esperou parar de pulsar o cordão e cortou, do jeitinho que a gente queria.
Eu não sabia se estava ali. Estava, mas não estava, não sei se estava. Ele colocou a bebê no meu colo e eu logo coloquei o peito perto do rosto dela: tinha que mamar na primeira hora, mas não mamava, só ficava me olhando com aqueles olhos pretos e grandes. Curiosos e confusos. Eu sabia que tinha que abraçar por algum motivo, foi cansativo. Enquanto abraçava, eu chorava, não acredito que acabou, depois de 17 horas, que alívio. Estamos todos bem.
Golden Hour: a primeira hora de vida. É o momento em que o bebê respira e sente o ar em sua pele pela primeira vez. Sentir o calor da pele da mãe e escutar sua voz se propagando no ar são elementos importantes para garantir o bom desenvolvimento do sistema imunológico e... - AI MINHA VAGINA! - A médica tentava costurar as laterais laceradas do meu clitóris sem anestesia, dizia que era difícil anestesiar aquela região. Não suportei, pedi para parar.
- Vai ficar feio! - disse a médica.
Meu marido insistiu que parasse porque eu não suportava mais e ela foi embora torcendo o nariz. Me deixou com a enfermeira e muitos panos cheios de sangue que foram sendo trocados um a um.
O plano inicial era parir na casa de parto, mas devido à pressão alta nos últimos três dias de gestação, tive que ir para o hospital. Fui internada na maternidade às 14 horas, depois de umas 4 horas esperando a transferência para outro hospital que nunca aconteceu. Até então, eu aguardava sem acompanhante na sala de espera, em cadeiras desconfortáveis, com contrações de 4 em 4 minutos, nas quais meu corpo automaticamente ficava de 4 no chão e mexia o quadril. Nunca achei que seria tão humilhante parir. Em algum momento escolhi sair do hospital e minha doula com meu marido praticamente me carregaram de colo até o estacionamento onde eu não ficaria tão exposta.
Durante o trabalho de parto eu me lembro muito bem do frio. Nunca senti tanto frio e nunca vi paredes tão brancas, luzes tão fortes. Minha vontade era forrar o chão com tapete fofinho, apagar a luz e cobrir as paredes com cores variadas. Queria sentir algum conforto, mas tudo era duro, gelado e excessivamente claro. De vez em quando vinha uma pessoa com um avental tão branco quanto as paredes para arrumar as almofadas da maca que eu insistia em jogar no chão. Meu marido andando atrás de mim mantendo um cobertor nas minhas costas porque eu só podia ficar de avental, mais nada.
A enfermeira me proibiu de fazer coco, mas eu fiz e não a chamei. Fiz umas 7 vezes e faria mais se desse vontade porque não a única vontade que não dá, é de respeitar regras quando você está tendo contrações seguidas. Tinha a hora certa de entrar no chuveiro e eu queria, porque a água era quente e abundante. Tentava pedir mas já estava em transe.
Por algum motivo a troca de plantão foi às 19h e, exatamente às 19:19 a médica disse para eu fazer força que o bebê nascia. Obviamente ela não queria uma gravidinha escandalosa como eu à noite toda na sala de parto.
Depois de subir para a enfermaria, fiquei algum tempo em um quarto com apenas uma mulher e seu bebê, e ela me contou mais ou menos como as coisas funcionavam ali e disse que eu não deveria me levantar sem chamar a técnica de enfermagem. Logo depois, fui transferida para uma sala com outras 5 mulheres e seus bebês. De hora em hora algum médico ou enfermeira entrava para examinar alguém, falava alto. A cama era muito alta, eu não conseguia descer sem dar um pulinho, sempre precisava de ajuda porque parecia que a qualquer momento meu clitóris ia se estatelar no chão.
Eu não sabia se podia dormir ou tinha que ficar olhando o bebê, trocando, tirando do berço. Eu não sabia se tinha que perguntar alguma coisa ou era só esperar. Não sabia se precisava trocar a roupa sempre que trocava a fralda. E ela começou a chorar e chorou ininterruptamente por toda uma madrugada. Eu já não aguentava mais e ela provavelmente também não, mas quando eu a punha no peito ela dormia. Achei que estivesse satisfeita, mas horas depois veio a confirmação: hipoglicemia. Seguimos os próximos 4 dias fazendo furos no seu calcanhar a cada 6 horas. Era um dos dias mais frios do ano, eu só conseguia sentir frio. De madrugada, na hora de medir a glicemia, a enfermeira dizia que o pé dela estava muito frio e eu teria que esquentar para fazer o exame, então eu deitava ela no meu peito e segurava seus pezinhos com uma mão durante 30, 40 minutos, quase sem me mexer.
Ela continuava tendo hipoglicemia e tomando fórmula após cada dextro, mas um médico negligente nos deu alta às 17h de uma sexta-feira. Ela, com baixo peso e sem saber mamar e eu, vazia, desconectada, sem saber para que lado deveria olhar.
Fomos de carro e ela com uma roupa vermelha que só foi servir bem depois de uns 4 meses. Cheguei em casa e liguei para minha mãe. Ainda bem que não consegui segurar o choro, porque assim ela veio em casa mesmo contra nossa vontade e percebeu que tinha alguma coisa errada: Iara era muito pequena e estava perdendo peso ao invés de ganhar. Ela salvou a nossa vida quando ligou para uma amiga pediatra que aceitou nos atender na segunda-feira: Dra. Alice.
A sensação era de que me tinham arrancado a pele e meu corpo era inteiro uma grande ferida exposta: não queria tocar em nada, não queria ser tocada. Meu desejo era ser engolida pelo colchão ou pelo ralo do chuveiro.
Iara era um bebê tenso, nós fazíamos tudo que podíamos e o objetivo final era mantê-la viva: tivemos sucesso, mas foram 2 árduos e dolorosos meses até descobrirmos que era necessária a cirurgia do freio da língua, e mais 2 meses para ela alcançar o peso saudável.
Quando eu estava grávida me perguntavam se eu tinha curiosidade de saber como ia ser o rostinho dela, e eu dizia que sim para desconversar, mas na verdade eu não ligava para isso. Depois que nasceu queriam saber se eu sabia viver sem ela e eu dizia que sim, porque eu vivi 30 anos sem ela, mas agora estava tudo diferente, e tudo bem. Depois que ela nasceu, minha psicóloga aumentou para 2 sessões semanais e me encaminhou ao psiquiatra, mas eu não fui. A Consultora de Amamentação me orientava à distância e investi uma parte de nossas reservas em seu atendimento em tempo integral, até de madrugada.
Seguimos sobrevivendo até ela fazer 9 meses, quando comecei a trabalhar e nos mudamos para uma cidade onde não conhecia ninguém. Quando ela tinha 1 ano e meio, comecei a notar em mim uma tristeza e irritação constantes. Um mês antes de seu aniversário de 2 anos, passei com a psiquiatra porque já não conseguia mais ficar sem chorar, pensava em largar tudo, pensava em desaparecer. Voltei a fazer terapia presencial e só um ano depois eu consegui falar o termo correto: Depressão Pós Parto (CID: F53). Fui perceber então, que quem estava à minha volta já sabia.
Hoje eu amo ver Iara cantar, dançar, falar e quero muito vê-la crescer. Ainda existe um buraco em mim, uma espécie de lapso que não consigo verbalizar e esse buraco provavelmente também existe nela. O cheiro de sabonete líquido infantil de glicerina da Granado me invadia as narinas e até pouco tempo eu não conseguia usar porque me lembrava aquele tempo no hospital.
Existem partes dessa história que não caberiam contar, e outras que provavelmente não aconteceram assim, mas importa mais a memória do que o fato. Envolve mais o enredo do que o desfecho, porque o enredo tem movimento, tem personalidade, enquanto o desfecho é só uma foto do que sobrou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário