domingo, 27 de outubro de 2024

Diário de quarentena #8

Antes da dor que explode, transborda e grita, existe a dor sussurrada, em conta-gotas, implodida. Não pense que quem grita sofre mais do que quem cala. Imagine um afogamento em que a água ocupa o lugar do ar que sairia como um grito de socorro que atravessaria o oceano se pudesse.
Gargalhadas escondem as lágrimas que ficam entaladas, às vezes não têm força para sair, mas também já não cabem num peito tão inundado pelo tempo. Ficam ali travadas, engrossando os nós na garganta, alimentando as paranóias.
Não sei se falo de mim, de outro, de nada. Pode mesmo ser um drama danado, mas dói. E eu posso não saber falar de outro jeito. Comunicar não é coisa fácil. Quanto mais falo, menos digo. Ainda existem os entraves e barreiras nos ouvidos de quem na verdade não quer escutar o que não agrada.
Me expresso de outro jeito, porque as gargalhadas escondem muito bem as lágrimas. Lágrimas que decepcionam a necessidade compulsiva de ter felicidade.
Não ter felicidade é sinal de fraqueza, incapacidade, falha. Eu não acredito nisso ou tento constantemente não acreditar para poder me confortar.
Não vou ficar, a essa altura, questionando o que é felicidade. Não me importa.
Olhares, palavras, gestos, energias. Braços cruzados, sorrisos engolidos, sarcasmo. Essa não sou eu, embora às vezes me venha ser essa. Esse é o mundo algumas vezes. Entende que dói? Poderia ter um nome. Parece que se tivesse um nome eu conseguiria colocar em uma caixa e guardar no fundo da gaveta, esquecer.
Diferente disso: ensimesmamento. Isso existe.
Se aparentemente estou para fora e expansivamente ocupando o mundo, na realidade estou fechando todas as brechas e abrindo apenas aquilo que posso e quero que seja acessado. Da mesma forma, se estar para dentro está aceitável, então o fora se torna fluido e tranquilo, seguro.
O mundo é hostil. Não sou um cristal, queria ser para poder quebrar, mas não sou.
Cascalho. Se um cascalho quebra não tem importância porque continua dando boa massa e não há por que se importar. Que bom que sou um cascalho, mas que pena que vou quebrar muito ainda.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Perdendo o time

Gosto de criar histórias na minha mente.
Construo o enredo do amor perfeito como se o amor ainda existisse. Aquele amor que arde e as vezes dói. Que tem cheiro, que tem vida. Aquele amor que queima muito e portanto queima rápido, mas que antes que se acabe acontece algum rompimento que faz arder mais, que faz não se acabar.

Crio com tanta fidelidade, que começo a acreditar no que criei.
Crio um beijo na adolescência seguido por uma paixão e uma desilusão. E que depois disso passa mais de uma década construindo um amor impossível na cabeça. E desse amor não consigo me desfazer. Dentro de mim é real e a projeção que faço todos os dias de você é real.
A adolescente se torna mulher, conhece outros mundos e carrega aquele gosto do beijo e do namorico às escondidas. Minha personalidade se formou com a marca da desilusão e a esperança do reencontro. Embora já não pense tanto, quando penso crio memórias do que não aconteceu, que se sobrepõem, se confundem até que não sei mais o que é passado ou presente, real ou imaginário.
Crio um ser amado que tem um jeito de falar, um gosto musical, um ritmo.
O ser criado se torna forte e fonte de novos desejos. Ela já acredita tanto no que criou, que não pode mais olhar para o real. É como se uma corda a puxasse para aquele ser amado imaginado idealizado.

Ele não sabe. Nunca soube dos suspiros noturnos, das lágrimas e da desesperança. Das vezes que ela passou no ônibus na frente da sua casa com a expectativa intensa de vê-lo sair pela porta com seu boné claro e suas roupas largas. Nunca vai saber das vezes que apareceu nos seus planos e sonhos. 
Não sabe nem vai saber porque não é ele, é a projeção de tudo que quis um dia colada no real-imaginário.

Se encontraram depois de exatos 20 anos. Até pouco tempo atrás lembrava a data do seu aniversário, pensava nele sempre. Não acreditou quando puxou o assunto e percebeu a riqueza de detalhes da memória que ele tinha daqueles beijos adolescentes. O gosto, o ritmo, a textura, seu cheiro. Nada mudou. Por que não deu certo? Que conversa mais maluca. Uma declaração de amor com 20 anos de atraso dá margem para muitas interpretações. Mas o nada mudar traz em si um dilema grave: dá a impressão de que é possível reviver o que deixamos passar por descuido, mas ao mesmo tempo traz uma imaturidade que não nos cabe mais.
Não seguimos. A vida não contempla mais um amor adolescente, se não algo que tenha raízes firmes e copa frondosa.

O que me resta é continuar a desejar o ser inventado com a consciência de que não podemos viver o que passou. Acordei no outro dia escutando as músicas que você me apresentou, que escutávamos juntos. Quem será você agora? Será que eu sou capaz de te ver com suas dimensões ou só capto a superficialidade que minha mente consegue alcançar?

O que você faria naquela noite?

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Relato de parir e sobreviver



Já te aviso: não é fofo, não é bonito, não tem final feliz nem triste, é só real.

- A hora que eu mandar você faz força..... Agora, força! - era a Manobra de Valsalva, eu sabia que não deveria, mas já faziam 17 horas que eu sentia dor, se ela me pedisse para pular da janela eu o faria.

- Ahhhhhhhhhhh!!!!!  - O bebê saiu.

Meu marido segurou no colo, esperou parar de pulsar o cordão e cortou, do jeitinho que a gente queria.

Eu não sabia se estava ali. Estava, mas não estava, não sei se estava. Ele colocou a bebê no meu colo e eu logo coloquei o peito perto do rosto dela: tinha que mamar na primeira hora, mas não mamava, só ficava me olhando com aqueles olhos pretos e grandes. Curiosos e confusos. Eu sabia que tinha que abraçar por algum motivo, foi cansativo. Enquanto abraçava, eu chorava, não acredito que acabou, depois de 17 horas, que alívio. Estamos todos bem.

Golden Hour: a primeira hora de vida. É o momento em que o bebê respira e sente o ar em sua pele pela primeira vez. Sentir o calor da pele da mãe e escutar sua voz se propagando no ar são elementos importantes para garantir o bom desenvolvimento do sistema imunológico e... - AI MINHA VAGINA! - A médica tentava costurar as laterais laceradas do meu clitóris sem anestesia, dizia que era difícil anestesiar aquela região. Não suportei, pedi para parar. 

 - Vai ficar feio! - disse a médica.

Meu marido insistiu que parasse porque eu não suportava mais e ela foi embora torcendo o nariz. Me deixou com a enfermeira e muitos panos cheios de sangue que foram sendo trocados um a um. 

O plano inicial era parir na casa de parto, mas devido à pressão alta nos últimos três dias de gestação, tive que ir para o hospital. Fui internada na maternidade às 14 horas, depois de umas 4 horas esperando a transferência para outro hospital que nunca aconteceu. Até então, eu aguardava sem acompanhante na sala de espera, em cadeiras desconfortáveis, com contrações de 4 em 4 minutos, nas quais meu corpo automaticamente ficava de 4 no chão e mexia o quadril. Nunca achei que seria tão humilhante parir. Em algum momento escolhi sair do hospital e minha doula com meu marido praticamente me carregaram de colo até o estacionamento onde eu não ficaria tão exposta.

Durante o trabalho de parto eu me lembro muito bem do frio. Nunca senti tanto frio e nunca vi paredes tão brancas, luzes tão fortes. Minha vontade era forrar o chão com tapete fofinho, apagar a luz e cobrir as paredes com cores variadas. Queria sentir algum conforto, mas tudo era duro, gelado e excessivamente claro. De vez em quando vinha uma pessoa com um avental tão branco quanto as paredes para arrumar as almofadas da maca que eu insistia em jogar no chão. Meu marido andando atrás de mim mantendo um cobertor nas minhas costas porque eu só podia ficar de avental, mais nada.

A enfermeira me proibiu de fazer coco, mas eu fiz e não a chamei. Fiz umas 7 vezes e faria mais se desse vontade porque não a única vontade que não dá, é de respeitar regras quando você está tendo contrações seguidas. Tinha a hora certa de entrar no chuveiro e eu queria, porque a água era quente e abundante. Tentava pedir mas já estava em transe.

Por algum motivo a troca de plantão foi às 19h e, exatamente às 19:19 a médica disse para eu fazer força que o bebê nascia. Obviamente ela não queria uma gravidinha escandalosa como eu à noite toda na sala de parto.

Depois de subir para a enfermaria, fiquei algum tempo em um quarto com apenas uma mulher e seu bebê, e ela me contou mais ou menos como as coisas funcionavam ali e disse que eu não deveria me levantar sem chamar a técnica de enfermagem. Logo depois, fui transferida para uma sala com outras 5 mulheres e seus bebês. De hora em hora algum médico ou enfermeira entrava para examinar alguém, falava alto. A cama era muito alta, eu não conseguia descer sem dar um pulinho, sempre precisava de ajuda porque parecia que a qualquer momento meu clitóris ia se estatelar no chão.

Eu não sabia se podia dormir ou tinha que ficar olhando o bebê, trocando, tirando do berço. Eu não sabia se tinha que perguntar alguma coisa ou era só esperar. Não sabia se precisava trocar a roupa sempre que trocava a fralda. E ela começou a chorar e chorou ininterruptamente por toda uma madrugada. Eu já não aguentava mais e ela provavelmente também não, mas quando eu a punha no peito ela dormia. Achei que estivesse satisfeita, mas horas depois veio a confirmação: hipoglicemia. Seguimos os próximos 4 dias fazendo furos no seu calcanhar a cada 6 horas. Era um dos dias mais frios do ano, eu só conseguia sentir frio. De madrugada, na hora de medir a glicemia, a enfermeira dizia que o pé dela estava muito frio e eu teria que esquentar para fazer o exame, então eu deitava ela no meu peito e segurava seus pezinhos com uma mão durante 30, 40 minutos, quase sem me mexer.

Ela continuava tendo hipoglicemia e tomando fórmula após cada dextro, mas um médico negligente nos deu alta às 17h de uma sexta-feira. Ela, com baixo peso e sem saber mamar e eu, vazia, desconectada, sem saber para que lado deveria olhar.

Fomos de carro e ela com uma roupa vermelha que só foi servir bem depois de uns 4 meses. Cheguei em casa e liguei para minha mãe. Ainda bem que não consegui segurar o choro, porque assim ela veio em casa mesmo contra nossa vontade e percebeu que tinha alguma coisa errada: Iara era muito pequena e estava perdendo peso ao invés de ganhar. Ela salvou a nossa vida quando ligou para uma amiga pediatra que aceitou nos atender na segunda-feira: Dra. Alice.

A sensação era de que me tinham arrancado a pele e meu corpo era inteiro uma grande ferida exposta: não queria tocar em nada, não queria ser tocada. Meu desejo era ser engolida pelo colchão ou pelo ralo do chuveiro.

Iara era um bebê tenso, nós fazíamos tudo que podíamos e o objetivo final era mantê-la viva: tivemos sucesso, mas foram 2 árduos e dolorosos meses até descobrirmos que era necessária a cirurgia do freio da língua, e mais 2 meses para ela alcançar o peso saudável.

Quando eu estava grávida me perguntavam se eu tinha curiosidade de saber como ia ser o rostinho dela, e eu dizia que sim para desconversar, mas na verdade eu não ligava para isso. Depois que nasceu queriam saber se eu sabia viver sem ela e eu dizia que sim, porque eu vivi 30 anos sem ela, mas agora estava tudo diferente, e tudo bem. Depois que ela nasceu, minha psicóloga aumentou para 2 sessões semanais e me encaminhou ao psiquiatra, mas eu não fui. A Consultora de Amamentação me orientava à distância e investi uma parte de nossas reservas em seu atendimento em tempo integral, até de madrugada.

Seguimos sobrevivendo até ela fazer 9 meses, quando comecei a trabalhar e nos mudamos para uma cidade onde não conhecia ninguém. Quando ela tinha 1 ano e meio, comecei a notar em mim uma tristeza e irritação constantes. Um mês antes de seu aniversário de 2 anos, passei com a psiquiatra porque já não conseguia mais ficar sem chorar, pensava em largar tudo, pensava em desaparecer. Voltei a fazer terapia presencial e só um ano depois eu consegui falar o termo correto: Depressão Pós Parto (CID: F53). Fui perceber então, que quem estava à minha volta já sabia.

Hoje eu amo ver Iara cantar, dançar, falar e quero muito vê-la crescer. Ainda existe um buraco em mim, uma espécie de lapso que não consigo verbalizar e esse buraco provavelmente também existe nela. O cheiro de sabonete líquido infantil de glicerina da Granado me invadia as narinas e até pouco tempo eu não conseguia usar porque me lembrava aquele tempo no hospital. 

Existem partes dessa história que não caberiam contar, e outras que provavelmente não aconteceram assim, mas importa mais a memória do que o fato. Envolve mais o enredo do que o desfecho, porque o enredo tem movimento, tem personalidade, enquanto o desfecho é só uma foto do que sobrou.



sexta-feira, 8 de março de 2024

Estou me sentindo só e a solidão leva meu pensamento até você ou o que eu construí sobre você. Não é tudo o que você é, mas uma face, uma parte, um resquício... É também, mas não só..
E me importa pouco o que é a realidade porque eu gosto mesmo é do mistério. E porque a impossibilidade da concretização nos permite abrir mão de nossos defeitos e faltas. 
Essa hipótese de algo que nunca acontece sana temporariamente a minha solidão, mas tão logo desligo a tela, ela volta e abre um pouco mais esse buraco no peito.
Sem vez para o desejo, volto a tomar banhos gelados e imaginar seu rosto no desenho da relação perfeita que criei. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Pula a onda e mergulha
Que falta fazem as estrelas no céu
Mas a lua, quando cheia,
Ilumina o mar
Parece um manto branco imenso
Inocente
Inofensivo
Mergulha profundo, imagina baleias
Se desloca no tempo das coisas que não se diz
Se solta dos ramos de algas que enroscam nos pés.
E deixa vir, deixa ir
Um corpo ali, uma alma aqui

Nessas noites de solidão
Não tem coisa mais bela do que o mar

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Pessoa Fernando

O poeta não é fingidor

Essa dor, ele deveras sente

Se pudesse fingir dor

A sentiria eternamente?

Sem cor, sem sabor, sem nada.

Estou sem paciência para vocês.

E para mim e para as minhas memórias. Só me resta o silêncio das coisas que não digo.

As grito, por isso ficam incompreensíveis.

Me perco, esqueço, confundo, desfaço. Pareço e estou sempre por um fio.

Dizem que qualquer vento me derruba, torcem o nariz. 

Digo mais: já estou caindo, embora as folhas das árvores pareçam imóveis e sem cor.

Sem sabor, sem sorriso, sem perspectiva. Parece que o fim de tudo vai dar na mesma, não importa.

Todos vamos virar comida de minhoca, não é mesmo? Então tanto faz.

Morrer me assusta, desespera. O que parece não ter graça é o que vem antes.

Daí de onde você me olha, parece que o fio aguenta ou arrebenta?

Pareço apresentável ou miserável?

E você, o que tem feito para se adequar? Se adequar tem tido qual efeito em você?

Deixa essa de presente. Por favor, cale-se. Me deixe calar.

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