terça-feira, 15 de setembro de 2020

Diário de quarentena #16 - Isto não é uma pandemia

Dirigi por 7 horas e meia para voltar pra casa depois de quase duas semanas fora. Não queria voltar e já nem sei mais quando estou indo ou voltando porque não me identifico com lugar nenhum. Vim com o som no último volume e conversando com a máquina de lavar que carregava no banco de trás. Importantes decisões pude tomar naquelas longas horas de serra.

 Mal entrei em casa e já sai para dar um mergulho antes do Sol se pôr. Quando cheguei na areia, tirei a roupa como quem tem pressa de encontrar o corpo do ser amado. Caminhei na direção do mar, molhei os pés e senti um leve choque que me subiu até a nuca, fui entrando sem parar. Não me veio outra coisa durante todo esse mergulho: Pandemia Global. Comecei a sorrir entre um mergulho e outro. Pandemia Global. Quando vi já estava gargalhando com a fragilidade de sentido desse termo. Não sei compreender o que isso significa, como não sei quanto é 1 bilhão de reais ou uma revoada de milhares pássaros migrando. Essas coisas assustam quando se escuta pela primeira vez, mas se você ficar repetindo essas palavras, elas se tornam insignificantes e até engraçadas: imagina mais de mil pássaros voando ao mesmo tempo....

Uma doença causa danos sanitários. Pelo menos era isso que eu imaginava nas aulas de história quando falavam de gripe espanhola, ou quando vivi de longe a epidemia de H1N1 nos anos 2000. Filas em hospitais, pessoas morrendo e tristes por perder os seus, cemitérios lotados. No máximo uma cena de filme cyber-punk: gangues que saqueavam mercados e roubavam comida uma das outras ... Nunca havia pensado que numa pandemia as pessoas discutissem proteger-se ou não, se retornam ou não os campeonatos de futebol, se as crianças devem se aglomerar em escolas. Parecia óbvio que tudo que fosse possível seria feito para evitar mortes. 

Ingênua, achava que era só se cuidar e o resto seria feito pela ciência, pelos médicos, pelos sistemas de saúde. Hoje estou vendo a comunicação midiática esquizofrênica que intencionalmente não diferencia o real do imaginário, o mercadológico do científico e as propagandas de bem-estar. Me lembro de um professor de história que contava como a mídia europeia começou a fazer propaganda de consumo de vísceras de animais por conta da fome e da miséria que a Primeira Guerra havia deixado. Era uma forma de estimular as pessoas a aproveitar mais do alimento. Muitos passaram então a comer miúdos de boi, cabra e porco mas, é claro, alguns ainda assim podiam escolher o que comer.

Pandemia global. E eu achei que a solidariedade poderia aparecer nas entrelinhas, no meio dos quintais, mas vejo garras, dentes e sangue escorrendo de cofres. Alguns estão tentando sobreviver, outros estão só continuando seus golpes e especulações.

Claramente estamos todos sós. Pandemia Global.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pesquisar este blog