quarta-feira, 6 de maio de 2020

Diário de quarentena #3

Isto não é um diário!
Parece que todas as pessoas com quem converso têm um combinado interno, invisível, sem combinar de fato: não podemos falar sobre morte, nem sobre COVID, nem sobre o medo... Ainda que falemos sobre isso o tempo todo. Não podemos deixar tão claro o pavor que estamos sentindo. Todos estão "segurando a peteca" uns para os outros. Nunca vi tanta solidariedade emocional.
Não falamos sobre leitos de UTI, não falamos sobre o medo de morrer, não falamos sobre isso. Não ignoramos, mas não é nosso assunto.
Não consigo deixar de comparar com o que eu imagino que tenha sido no período da guerra. As pessoas escutavam o rádio esperando por notícias. Elas não queriam notícias sobre as últimas falcatruas políticas ou os últimos memes que o presidente nos deu o prazer do riso, mas esperavam pelos nomes das cidades bombardeadas, pelas ameaças nucleares.
Pais de família que estavam em linha de frente de batalha estava lá, seja onde for lá, com sua cabeça a prêmio. Um prêmio tosco e sem valor, 10, 20, 100 mortes por batalha. Representavam um Estado que não os representava. Sente a angústia? A crianças na sala escutando o rádio. A última carta do pai informava que tinha saudade e estava indo para uma cidade que nem sabiam pronunciar o nome. Falavam uma coisa no rádio que parecia essa palavra aí, impronunciável. Bombardeio, trincheira, conflito. Não sei como anunciavam. Acho que não quero pesquisar agora, sinto que estou na mesma situação, só que décadas à frente.
Tenho saído de casa todos os dias com a sensação de que vou para a guerra. É como se não soubesse se vou voltar para casa e, ainda que volte, talvez volte ferida. Penso todos os dias nos amigos e familiares e sei que eles pensam em mim. Estamos alerta a todo momento e que bom que posso usar minhas válvulas artísticas de escape.
Todos os dias no trabalho sinto os olhos marejarem em algum momento, mas não, não deixo escorrer uma lágrima. É como se eu estivesse segurando as lágrimas dos meus companheiros e eles as minhas. Chorar seria como abandonar os outros. E pior, porque ser humano tem empatia, então se um chora todos se desmancham e enfraquecem. Seria então abandonar a trincheira e levar as armas, deixá-los por alguns momentos desarmados enfrentando o inimigo.

Moro em uma cidade pequena, temos apenas cento e poucos leitos de UTI, 22% já está ocupado. Em uma semana triplicaram o número de casos e mortes por COVID-19. Não se fala sobre isso de maneira sensível, não se deve porque a lei agora é ser forte e cuidar de todos. Ontem reabriu o comércio e domingo é dia das mães. Vida normal, só que com máscaras. Não sei onde isso vai dar.

Estou sufocada pela máscara, pela saudade e pela angústia de não ter data limite. Ao mesmo tempo não quero que isso se acabe antes de mudar o mundo e quebrar um sistema já falido.

Não quero mais ver mortes, não quero morrer, mas se for pra ser, que essa porra toda ao menos se transforme.

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