terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Enquanto o tempo passa...

Enquanto o doutor falava eu ainda não havia percebido a que ponto da conversa estávamos. O papai falava dos assuntos sérios, as condições de pagamento, o procedimento e todos os detalhes de tal ironia. E só conseguia olhar para o doutor, para suas mãos, os movimentos que fazia enquanto falava, explicava da dificuldade e da opção que faria se pudesse de resolver o problema de outra forma.

Não havia olhado para a mamãe ainda. Não havia tido chance ou motivo para fazê-lo. Logo comecei a perceber que as palavras do especialista para meu pai se encaminhavam a uma decisão drástica. Então olhei: mamãe tinha os olhos afogados, o nariz vermelho e a boca trêmula. Até então, durante todos esses dias, eu me segurara. Limpando sua sujeira, alimentando-o e dando carinho. Não me canso de lembrar quando eu chegava na casa de meus pais e ele vinha correndo me recceber: feliz, sem nem mesmo lembrar-se que eu havia passado meses distante.

Neste momento desabei. Desabei por lembrar de tudo, do carinho, dos momentos, do aprendizado, de uma vida ao seu lado.
Já não escutava quando era chamado, olhava para todos os lados e nada via, nem mesmo comida: arroz e feijão com pouco caldo - só um pouco morno - do jeito que ele mais gostava.

O doutor, enquanto dava a notícia, mantinha os exames sobre a mesa, debaixo dos cotovelos. Tinha os olhos grandes e dava para perceber que sabia o que falava. "Não tem saída mesmo. Melhorar ele não vai, uma estabilidade dessa maneira não é confortável. Está sofrendo demais: mal come, tem dificuldade de respirar, a coluna e as pernas doem, sem contar o coração,..." Aquilo doía.

Enquanto as lágrimas corriam pelo meu rosto e o da mamãe, papai falava sério, austero, segurando sentimentos entre os dentes.

Ficou decidido. Eu não tive reação ou palavra. Papai pegou o telefone do doutor: "Te ligo amanhã pela manhã."
Um aperto de mão em cada membro desolado da família, sem olhar nos olhos. Não tínhamos condições de dar demonstrações de confiança ou orgulho ou força ou nada.
Saímos da sala agradecendo.

Cheguei em casa ele estava deitado no portão, dormia de olhos aberto - desde que ficou cego. Não consegui dizer nada. Não me sentia uma traidora, só sentia saudade do que ainda não havia perdido de fato. Chorei um pouco ainda enquanto acariciava seu pescoço e passava os dedos atrás de suas orelhas, sempre em pé, como ele mais gostava.

Lembrei de quando me deitava no chão ao seu lado e encostava a cabeça em seu peito. De quando chegávamos de viagem, e ele ficava pulando e como que sapateando no lugar, e latia, para mostrar como estava feliz em nos ver. De um Reveillon que passamos em casa, e minha tia, que tinha pavor de cachorro, ficou trancada no quarto com minha prima de colo e ele, durante a queima de fogos. E de quando ele ouvia a palavra "passear", o fogo em que ficava e corria para o portão.

E me lembrei de quando ele já não conseguia mais andar direito e ficou uma vez deitado na garagem, não dando espaço para o carro entrar, e de quando o papai brigava com ele para não entrar na sala, não mexer na comida, não fazer tantas coisas.

E me lembrei de quando saí da casa de meus pais há 8 ou 9 meses, como ele ainda corria, pulava, latia, chorava para entrar quando estava com medo ou quando ouvia a voz da mamãe.

Depois de chegarmos em casa e ficarmos um pouco com ele, o papai ficou em choque, sequer ligou a TV. Mamãe correu para o quarto, foi dormir ou ficar um pouco sozinha. Eu não conseguia pensar em nada, fiz um doce de banana para me destrair um pouco.

Quase dezesseis anos, broncas, sorrisos, passeios, mordidas, noites sem dormir, fogos que assustavam, ração preferida, ossinhos que não lhe serviam nem para palitar os dentes: exagero de tamanho que tinha.

Sem mais sofrimentos, o doutor passaria no dia seguinte para terminar o serviço. Eutanásia.
Arrepios.

E fim, 29 de dezembro de 2010.

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