quarta-feira, 10 de junho de 2009

O músico que escrevia em guarda-chuvas.

Entrei no trem com alguma pressa e já não havia bancos vazios.
Me enfiei entre as pessoas num espaço de corredor que restava e ali fiquei.
Estava com uma sombrinha molhada dentro de uma sacola na mão. Minha roupa estava um pouco molhada e gelada. Sono. Desespero. Desde manhã havia começado a pensar que hoje seria um ótimo dia para o mundo acabar. Até cheguei a entrar no assunto com alguns amigos.
"A profecia dos astecas poderia se concretizar, mas um pouco adiantada. 2012. Hoje."

A chuva não parava e a solução foi aguentar um pouco aquele frio.
Sentimentos estranhos. Medo. Pressa.

Quando algumas pessoas saíram, encontrei um banco vazio. Me sentei.
Em minha frente havia um homem.

Dados do homem:
Aproximadamente 1,60. Próximo de 50 anos. Olhos azuis bem claros. Cabelos grisalhos penteados e com algum tipo de gel ou gordura, formando algo parecido com um topete, deixando exposta as entradas calvas. Suas sobrancelhas manchadas juntavam às suas marcas de expressão e seu rosto se assemelhava ao de um diabo. Com sua arrogância quase autoritária olhava pela janela. Olhava para a mulher sentada ao seu lado.

Dados da mulher:
A Noiva Cadáver. Quando a percebi estava com um espelho pequeno e redondo nas mãos, afinando suas finas sobrancelhas. Seus movimentos eram mortos, quase mecânicos. Seus olhos grandes, nariz e queixo pontudos, dedos e braços finos e uma boca morta. Só não era pálida, isso não era. Mas era assustadoramente uma cadáver em movimento.

Fiquei a observar. Aquelas pessoas estranhas sentadas à minha frente. Coicidência eu conhecer a Noiva Cadáver e o Diabo no dia em que o mundo deveria acabar?

De repente o Diabo abre um caderno que esteve o tempo todo em suas mãos, mas eu não havia reparado. No caderno havia pautas. E notas musicais. Eram código, partituras, notas musicais, tempos, compassos, contra-tempos...E ele lia aquela música louca que só ele ouvia. Assoviava algumas melodias e fazia sinal de afirmação com a cabeça. O tempo todo produzia os tempos e contra-tempos batendo o calcanhar no chão. Até o final, só abria a boca para assoviar mais umas duas vezes.

Porque cargas d'água o diabo estava num trem, ao lado da Noiva Cadáver, lendo uma canção?!

Durante a viagem musical do Diabo a Noiva Cadáver havia terminado de afinar as sobrancelhas. Passou a se contorcer com seus olhos grandes, mecânicos e curiosos para ler o que havia no caderno do Diabo. E ela leu. E ela não fez cara de quem entendia. Fez cara de quem lia. Fez cara de nada, não havia expressão em seu rosto fino e assustado.

Continuei a observar.

Algumas estações depois houve uma quebra na minha linha de raciocínio insano de ter encontrado o Diabo e a Noiva Cadáver juntos em um trem: uma voz. Uma canção.
A Noiva Cadáver começou a cantar algo que tocava seus tímpanos, algo que saia dos pequenos fones de ouvido que entravam em suas orelhas. E cantava alto e todos no trem começaram a olhar. Olharam para ela e olharam para mim, eu era a pessoa acordada mais próxima dela, a não ser o Diabo. E o trem todo ouvia e todos transpareciam em seus olhos: "Que situação você está hein! Uma louca tão próxima assim!"
Ela continuava a cantar. E movia os braços e os olhos mecanicamente. Caiu um pacote próximo de seus pés, ela não reagiu. Cantou e cantou mais alto. A música era de igreja, não sei bem de qual, mas falava algo de estar sob as asas do Senhor e ter prazer em estar com Ele.

E o Diabo continuava a ler a canção. Às vezes levantava os olhos. Olhava para mim, olhava para ela, olhava para fora. Nada parecia lhe comover ou impressionar. Ele lia a canção. E quando parou. E quando fechou o caderno da canção. Começou a mexer em seu guarda chuva, que mais parecia um guarda Sol. Era verde e amarelo, me lembrou nossa bandeira, nossas matas, nosso ouro, nossos trens e me lembrou minha roupa molhada e o frio.

Nas listras amarelas do guarda chuva havia algo escrito. A princípio pensei ser a marca ou algum código que fabricantes de guarda chuva utilizassem, mas logo o Diabo colocou o objeto brasileiro no colo, fechou-o com a fitinha de velcro. Ajeitou bem as listras e na ponta das amarelas começou a escrever com uma caneta azul.

Tudo isso acontecia enquanto eu ouvia o som da voz desafinada da Noiva Cadáver e sentia seus movimentos. Um espetáculo assustador.

Ele escreveu em pelo menos 4 listras amarelas até que eu pudesse enxergar o que estava escrito.

"Túpete"
E as letras eram tortas e esmagadas. Não pequenas, mas descuidadas.

Pensei por algum tempo até chegar à conclusão de que aquele era seu apelido. "Topete, claro!" Mas porque "Túpete" e não Topete, simplesmente?!
Ele devia ser italiano, achei que não falasse português.

Estação Brás. E a Noiva Cadáver saiu do trem. Ao se levantar o Diabo encarou seu corpo magro e um sorriso invadiu seu lábio, no canto.
O resto do trajeto acompanhei os mínimos detalhes da presença do Túpete.

Na Luz ele se levantou, esperei que desse alguns passos e fui atrás dele. Desci e a caminho da escada rolante ouvi sua voz falando para o ar: "Não tenho pressa não, não tenho pressa."

Estranho. Não era italiano. Falava português.
E o Diabo Túpete seguiu seu caminho, e a Noiva Cadáver também. E eu consegui duas pessoas para pensar durante todo o dia e esquecer de meus planos para acabar com o mundo no dia de hoje.

Só quero dormir e sentir a chuva caindo e levando embora tudo o que pode ser ruim.
A vida só passa, então deixa passar.

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