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Foto de Janainny - Chile, jun 2019 |
Seus olhos não me enganam, sei bem quais são seus planos.
Olho de quem chega, traz a mala, traz a cuia, serve a mesa, se derrama, rearranja a mobília, muda a configuração da cama.
No começo é invasivo, não da pra entender muito bem: onde foi que eu dei a brecha pra você se espalhar tanto? Até revista no seu nome eu comecei a receber. Quando eu vejo, o vizinho já está cumprimentando, convidando pra tomar um café. O vizinho que eu sequer dava bom dia.
Aí depois das tantas, eu já deitado para dormir, toca a campainha e você levanta correndo, fuça minha carteira, pega meu cartão, recebe a pizza, paga à vista. Não acho ruim não, tava indo dormir com fome. Fiquei satisfeito, meio sem querer entender. Saborosa, inclusive a pizza.
Um dia cheguei mais cedo pra te convidar para um cinema, mas você estava estressada demais com as questões de passaporte, visto, não entendo muito disso. Fiquei calado em frente à TV.
Depois de um tempo começou a se recolher. Juntou as tralhas nas malas, como se fosse assim um guarda-roupa, ficou ali por semanas tirando só o que ia usar. Começou, só então, a pedir permissão para me invadir: posso usar seu cartão? Posso chamar alguém pra almoçar com a gente? Posso desligar a TV quando você dormir? Comecei a querer entender desde o princípio. Que diabos ela vem, me desarruma, tira tudo do lugar, e agora, que eu já não consigo encontrar minha identidade sozinho, vem pedir permissão?
Confuso, compro um vinho. Se não toma comigo, tomo sozinho. Chego, ela tem olheiras, cabelos ressecados, um pouco de olhos marejados. Leva tudo que trouxe com ela, fazendo caber nas pequenas malas, na sala, arrumadas. "Não esqueça de regar as plantas. Meu tempo já deu por aqui."
Mas que diabos. As plantas não fui eu que escolhi. Lá sei eu cuidar de planta. Não demorou a partir.
Não reconheço mais a mobília, a rotina, a vizinhança. Mesmo voltando para o lugar de antes, não tem eu mais ali.
Foi você, bagunçou tudo com esses olhos sem foco, esses movimentos expansivos. Foi você, mas o que você levou, foi um pedaço de mim, um pedaço meio assim.
Ira, revolta, raiva, dor. Aos poucos fui apaziguando e entendendo. O buraco que você abriu, foi o necessário para fazer ventilar, iluminar.
Agora posso ocupar com um pouco mais de mim.
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